A lei atual diz que a outorga para uso de água é dispensada para “satisfação das necessidades básicas da vida” – pelo novo projeto, no entanto, essa dispensa seria estendida às “atividades produtivas agrosilvopastoris”. Foto: Claudio Fachel/Palácio Piratini
Para ambientalistas, proposta enfraquece a proteção das águas no Rio Grande do Sul; agricultores, no entanto, dizem que custo é alto para a produção familiar
Um projeto que dispensa a exigência de outorga para a captação de águas subterrâneas e pluviais destinadas à agricultura, à pecuária e à silvicultura nas bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul teve sua tramitação retomada na Assembleia Legislativa do estado nesta terça-feira. A proposta, protocolada ainda em 2018, teve seu parecer aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) por nove votos a três.
Além da autorização, o texto isenta as propriedades da agricultura familiar de cobrança pelo uso da água desses reservatórios. Com autoria do deputado Elton Weber (PSB), construída pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag) e com parecer do deputado Luciano Silveira (MDB), o projeto agora segue para análise nas comissões de mérito, antes da votação em plenário.
A proposição altera a Lei 10.350, que institui o Sistema Estadual de Recursos Hídricos na Constituição do Rio Grande do Sul. A lei atual diz que a outorga para uso de água é dispensada para “satisfação das necessidades básicas da vida” – pelo novo projeto, no entanto, essa dispensa seria estendida às “atividades produtivas agrosilvopastoris”, em locais onde não há rede pública disponível para conexão, ainda que a captação e estoque de águas pluviais e subterrâneas não exima as propriedades rurais de cadastro no Sistema de Outorga de Água (SIOUT), para monitoramento.
Para a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), a proposta de nova lei representa um “retrocesso na gestão e proteção dos recursos hídricos” no Rio Grande do Sul. A entidade diz que a produção agropecuária, setor da economia que mais utiliza água, “ficaria dispensada da outorga e a maioria das propriedades rurais, independentes do que produzem e da quantidade de água utilizada, não pagariam”, conforme publicou na sexta-feira passada (21), quando se aproximava a votação da constitucionalidade do projeto na CCJ.
O deputado Weber, por outro lado, afirma que a dispensa de outorga de recursos hídricos já é um documento expedido por outros estados, no caso de consumos de água considerados insignificantes, pois esses usos não ultrapassam patamares que podem ser prejudiciais aos ecossistemas. Para ele, com o texto, o Estado não abriria mão do controle do uso das águas subterrâneas, mas desburocratiza e desonera agricultores de baixa renda que não teriam acesso a esse recurso “por ausência do Estado”. “Tem algo muito errado quando o agricultor tem que pagar para produzir alimentos”, disse o parlamentar, na votação desta terça.
A Agapan, por sua vez, argumenta que já há legislação federal a prever a utilização dessas águas subterrâneas ou da chuva. “O proponente usa a satisfação individual e para as pequenas comunidades rurais para justificar a alteração da Lei nº 10.350, de 1994, que este ano completa 30 anos, mas quer mesmo abrir a porteira para a retirada de controle público”, diz a nota assinada pelo presidente da associação, Heverton Lacerda.
A entidade recorda que o Rio Grande do Sul foi atingido por diversas tragédias ambientais no último ano – não somente no final de abril e no começo de maio deste ano, mas desde setembro de 2023. “Para que tragédias desse tipo não se repitam é necessário preservar os biomas, os ecossistemas, a biodiversidade e os recursos hídricos”, afirma a entidade, para a qual o governo deve investir na revitalização das bacias hidrográficas, restaurar a vegetação nativa dos biomas gaúchos e incentivar sistemas agrícolas ecológicos.
Para enfrentar as estiagens – razão principal de utilização de águas subterrâneas na agropecuária –, a associação recomenda ampliação das Áreas de Preservação Permanentes (APPs) e unidades de conservação que contribuem com serviços ecossistêmicos.
A Fetag, entretanto, defendeu a importância do projeto nesta terça. “O pagamento da outorga é caro para agricultura familiar, a proposição traz em sua essência o atendimento das demandas da agricultura familiar e o cuidado do meio ambiente. Lamentamos que deputados que se dizem representantes da agricultura familiar sejam contra projetos desta natureza”, disse o presidente da federação, Carlos Joel da Silva.
Esquerda questiona a constitucionalidade da proposta
Foram três votos contrários ao parecer da lei na CCJ: da deputada Luciana Genro (Psol) e dos deputados Luiz Fernando Mainardi e Miguel Rossetto, ambos do PT.
Votaram a favor os parlamentares Marcus Vinicius (PP), Nadine Anflor (PSDB), Edvilson Brum (MDB), Luciano Silveira (MDB), Luciano Silveira (MDB), Rodrigo Lorenzini Zucco (Republicanos), Valdir Bonatto (PSD), Martim Todesco Adreani (Republicanos) e Cláudio Tatsch (PL), além do próprio presidente da comissão, Frederico Antunes (PP)..
Para Rossetto, primeiro parlamentar a se manifestar, a proposta de legislação se chocaria com uma lei nacional que estabelece critério para utilização de recursos hídricos. “Temos compromisso com a agricultura familiar do Rio Grande do Sul, com o meio ambiente e com a natureza. Por conta da natureza desta comissão, também com a legalidade e a constitucionalidade dos projetos”, disse, ao expor seu voto. Ele afirma que o texto acerta ao tratar do custo de outorga, que é alto para produtores familiares, mas que o Estado perde a possibilidade de regular o uso indiscriminado com a proposta de alteração de critérios.
Além de Rossetto, também o deputado Mainardi defendeu a inconstitucionalidade do projeto, enquanto Marcus Vinícius e Zucco argumentaram pela legalidade da matéria.
Outros projetos relativos a questões ambientais dividem opiniões
Outra comissão da Assembleia aprovou, recentemente, um projeto voltado também à produção de alimentos, mas focado no fomento à produção de orgânicos no Rio Grande do Sul. O Projeto de Lei 104/2023, do deputado Adão Pretto Filho (PT), prevê a criação da Política Estadual de Fomento à Agricultura Regenerativa, Biológica e Sustentável, e foi aprovado pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Pesca e Cooperativismo do legislativo gaúcho na sexta-feira passada (21). Antes da aprovação, porém, houve uma série de pedidos de vista à proposta – Luciano Silveira, Capitão Martim e Aloísio Classmann (União Brasil) utilizaram o instrumento regimental.
De acordo com o autor do texto, a utilização de bio-insumos – em detrimento dos químicos – permite maior produtividade e rentabilidade para agricultores, além de fortalecer o solo. Segundo ele, as culturas ficam mais resistentes às estiagens e a chuvas extremas. O projeto prevê apoio do estado com linhas de crédito subsidiadas para incentivar a adoção de tecnologias de baixo impacto ambiental.
Já sancionada pelo governador Eduardo Leite (PSDB), a lei que transforma em interesse público obras para barragens, sistema de irrigação e açudes, reduzindo restrições de construção nas APPs, foi aprovada pela Assembleia em março, mas contestada pelo Partido Verde (PV) ainda em maio.
Também destinada a combater os efeitos da estiagem pela irrigação, essa lei é criticada por reduzir patamares mínimos de proteção e permitir a ocupação de campos e solos justamente em áreas de alagamento e chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). Ao jornal O Globo, a Procuradoria-Geral do Estado defendeu a lei no começo de junho pois considera que “atende a particularidades locais do Estado do Rio Grande do Sul, há anos penalizado com recorrentes secas e estiagens que ameaçam a segurança alimentar no Estado e comprometem severamente o desenvolvimento econômico do setor agrícola”, conforme divugado em nota. “A construção de barragens para irrigação somente pode ser feita após aprovação pelo órgão ambiental competente, segundo normas e diretrizes ambientais”, argumentou o órgão.