Para Daniel Yergin, Petrobras tem grande contribuição para a estabilidade dos preços mundiais de petróleo e para a segurança energética global
Uma das maiores referências do mercado de energia do mundo, o especialista americano Daniel Yergin alerta que a transição energética será multidimensional e mais complicada do que se imaginava. A segurança energética, afirma, provou-se parte importante desta equação, sobretudo após os conflitos na Ucrânia e no Oriente, e deve ser pensada não apenas em termos de petróleo e gás, mas de electricidade, pois há uma procura maior de energia por conta da inteligência artificial (IA). Neste contexto, o autor do livro “O Novo Mapa: Energia, Clima e o Conflito entre Nações” (2023) avalia que Brasil e Estados Unidos têm papéis importantes a exercer e grandes oportunidades de parceria.
“A partilha do progresso tecnológico em áreas como hidrogênio e captura de carbono será uma área fundamental para a cooperação”, disse, em entrevista ao Valor. Ele fala em “onda do hemisfério ocidental”, com crescimento dramático na produção de petróleo sobretudo nos EUA, Guiana, Canadá e Brasil, e destaca que este último tornou-se um dos principais players na renovação do desenvolvimento offshore, importante foco de investimento e de redução da volatilidade dos preços do óleo, ao ajudar a mitigar o potencial de picos em momentos de tensão geopolítica. Mas enfatiza que a crescente concorrência entre detentores de recursos pelo investimento internacional obriga países como o Brasil a manterem-se competitivos e com estabilidade fiscal e na área da regulamentação.
Vice-presidente da S&P Global e vencedor do Pulitzer com o livro “Petróleo” (2012), ele recomenda reflexão, políticas cuidadosas e habilidade de Estado para que Brasil e América Latina encontrem equilíbrio na busca por relações produtivas em meio ao cabo-de-guerra entre EUA e China. Segundo ele, o mundo passou de uma era de consenso da Organização Mundial de Comércio (OMC) – crença no benefício comum de um mundo aberto e globalizado- para uma era de competição entre grandes potências.
Valor: Os EUA são o maior exportador de gás natural liquefeito e produtor de petróleo do mundo. Será um dos três grandes do petróleo mundial, como o senhor afirma em seu livro. O Brasil está na Opep+ e deve estar entre os maiores do mundo até o fim da década. O que isso significa para a relação EUA-Brasil em termos de investimentos, parceria e geopolítica?
Daniel Yergin: O equilíbrio de poder no mercado petrolífero global mudou nos últimos dois anos devido ao que chamo de “onda do hemisfério ocidental”, o crescimento dramático na produção de petróleo. Tem sido liderado, claro, pelos EUA, que quase triplicaram sua produção desde 2008 e agora são, de longe, o maior produtor mundial. Juntamente com a Guiana e o Canadá, o crescimento do Brasil tem sido muito significativo, o que contribuirá para seu crescimento econômico.
O Brasil é um dos principais players na renovação do desenvolvimento offshore e um importante foco de investimento, contribuindo para a estabilidade no mercado mundial de petróleo. Dadas as duas guerras, no Oriente Médio e na Ucrânia, a produção do Brasil reduziu a volatilidade do petróleo e ajudou a mitigar o potencial para grandes picos de preços em momentos de grande tensão geopolítica. Isto reflete a preocupação do Brasil com a acessibilidade energética e o acesso à energia por países em desenvolvimento. Até o momento a indicação é que o Brasil não participará dos cortes de produção da Opep+. Manter as escolhas de produção nas mãos do Brasil certamente apoiará as ambições do país de atingir o seu potencial e ser uma fonte de crescimento.
Valor: Especialistas falam em uma cooperação EUA-Brasil na frente petrolífera nos próximos anos. Isso seria viável?
Yergin: Não vejo potencial para uma grande cooperação na frente petrolífera entre EUA e o Brasil enquanto governos. A verdadeira cooperação é o grau em que o Brasil continua atraindo investimentos e fluxos de tecnologia de empresas internacionais. A concorrência entre os países detentores de recursos pelo investimento internacional tornou-se muito mais intensa à medida que empresas se tornaram mais seletivas, e é extremamente importante permanecer competitivo e manter a estabilidade nos regimes fiscais e de regulamentação.
O Brasil tem sido líder na América Latina na atração de investimentos. Isso apoiou transferências de tecnologia, como o apoio às metas do Brasil para a descarbonização no setor. Minha empresa tem valorizado a oportunidade de trabalhar com a Petrobras em estudos sobre o potencial de captura de carbono e hidrogênio. Esse tipo de colaboração é o que garantirá benefícios financeiros e econômicos ao Brasil nos próximos anos.
Valor: Seria mais um campo de competição entre os dois?
Yergin: A diversificação na produção global de petróleo e gás é boa para os mercados internacionais, para o Brasil e para os EUA. O investimento e a produção por parte de muitos países ajudam a garantir a estabilidade nos mercados. Em tempos de instabilidade geopolítica global, como agora, empresas de energia responsáveis, como a Petrobras, que desenvolvem estratégias de investimento transparentes e alinhadas com avaliações da demanda global, proporcionam o tipo de resiliência de que necessitamos. Volto ao meu exemplo da onda do hemisfério ccidental. Trata-se de uma grande contribuição para a estabilidade e para a segurança energética da comunidade global.
Valor: Como o senhor vê a mudança na transição energética?
Yergin: Muito do pensamento sobre a transição foi desenvolvido e aguçado durante a covid, quando a procura por energia estava a cair e os preços, em colapso. Levou ao pensamento linear de que a transição energética poderia desenrolar-se como uma linha num gráfico e que a segurança energética não era um problema. Agora vai ficando claro que será uma transição multidimensional, que se desenrolará de diferentes formas em todo o mundo e que será mais complicada. A segurança energética aplica-se não só ao petróleo e ao gás, mas também à electricidade, com aumentos acentuados na procura de energia decorrentes da inteligência artificial. O gás natural e o petróleo continuarão a desempenhar um papel importante. Há preocupações crescentes sobre a disponibilidade de minerais necessários para a transição.
E, o mais importante: tornou-se evidente uma divisão norte-sul na transição energética, uma vez que os países do sul [global] também têm de se concentrar no crescimento econômico, na redução da pobreza e na melhoria da saúde. O que funciona para a Europa não funciona necessariamente para África. Assim, a transição energética vai se desenrolar a ritmos diferentes, com diferentes combinações de tecnologias e com diferentes combinações de prioridades.O equilíbrio de poder no mercado petrolífero global mudou” — Daniel Yergin
Valor: Neste contexto, quais os papéis a serem desempenhados pelo Brasil e pelos EUA?
Yerging: Como grandes países que são, simultaneamente, consumidores e produtores, têm papéis importantes. O Brasil possui grandes recursos naturais que contribuem para a gestão do carbono e também possui grande capacidade técnica. Os Estados Unidos têm mercados de capitais profundos e, com a histórica Lei de Redução da Inflação, estão colocando recursos financeiros para trabalhar em todo o espectro energético. A partilha do progresso tecnológico em áreas como o hidrogênio e a captura de carbono será uma área fundamental para a cooperação. O Brasil já possui uma das matrizes energéticas com menores emissões do mundo, devido ao enorme uso de energia hidrelétrica. Mas as secas afetaram a viabilidade da energia hidráulica, deixando clara a necessidade de gás natural ou armazenamento de baterias para ajudar a estabilizar os sistemas energéticos do Brasil no futuro. Estas são áreas em que a S&P global tem grande experiência, e acolhemos com satisfação oportunidades de compartilhar insights nessas áreas com o Brasil, especialmente no contexto de seu papel de presidente do G20.
Valor: Qual é a diferença entre a transição energética atual e as anteriores?
Yergin: Isso é algo em que me concentrei no [livro] “Novo Mapa”. Queria entender como ocorreram as transições energéticas, já que todos falam em transição energética sem um entendimento histórico. Acho que essa é uma das seções mais importantes do livro e peço às pessoas que a leiam com atenção. As transições energéticas anteriores levaram um século e foram, na verdade, acréscimos de energia – uma fonte em cima da outra. O ano passado foi o maior consumo de carvão da história, três vezes o que foi na década de 1960. Esta transição energética deve acontecer ao longo de um quarto de século, até 2050, e transformar completamente o que hoje é uma economia mundial de mais de US$ 105 trilhões. Se você olhar dessa maneira, dirá que é ambicioso. E veja que cinco países que produzem 45% das emissões – China, Indonésia, Nigéria, Índia e Rússia – têm metas para 2060 ou 2070!
Valor: Brasil e Estados Unidos pode trabalhar juntos em energias renováveis? Onde e como uniriam forças?
Yergin: Não faltam empresas que trabalham e investem em energias renováveis. É importante ter o apoio institucional. É uma questão de garantir que o financiamento esteja disponível e que o custo do capital seja acessível aos países em desenvolvimento. O Brasil fez do acesso ao financiamento energético uma questão importante para o G20. O Azerbaijão tem o financiamento da energia como a principal questão da COP29, em novembro. Com a sua presidência da COP30 em 2025, o Brasil terá uma oportunidade contínua de deixar uma marca importante nesta questão, para reunir as questões de sustentabilidade, acessibilidade, disponibilidade, segurança energética e competitividade que são tão críticas para a transição energética. Serão necessários grupos de trabalho sobre inovação tecnológica e financeira para satisfazer as ambições, em particular, dos países em desenvolvimento.
Valor: Na era da transição energética, o Brasil é uma potência líder. A China investe muito no país. O Brasil pode se tornar uma das frentes de batalha EUA-China?
Yergin: Sim, o Brasil pode ser líder. Absolutamente. Mas, na sua pergunta anterior, você levantou uma questão crítica que contribuirá muito para definir o mundo futuro. A forma como enquadro o problema no “Novo Mapa” é que passamos da era do “Consenso da OMC” – que é a crença no benefício comum de um mundo aberto e globalizado – para uma era de competição entre grandes potências. E essa concorrência entre os Estados Unidos e a China está cada vez mais intensa, agravada pela invasão da Ucrânia pela Rússia e pela polarização resultante, incluindo o efeito sobre a Europa. Afeta não só as despesas militares, mas também a tecnologia, o investimento, o comércio, os minerais e o protecionismo. E agora até mesmo a indústria transformadora verde.
Ouço repetidamente dos líderes da Ásia, África e América Latina que não querem ser apanhados no meio da arena competitiva entre os Estados Unidos e a China. Querem relações produtivas tanto com os Estados Unidos como com a China. Isso será um desafio para o Brasil e outros países, e será necessária muita reflexão, políticas cuidadosas e habilidade de estadista para encontrar o equilíbrio certo nesta nova era.